domingo, 11 de julho de 2010

Aparadores e desamores

Eles viviam em uma casa sem móveis. Não que não tivessem dinheiro para comprá-los. É que não havia ali espaço para sofás de três lugares ou mesas de centro inúteis. Um amor imenso ocupava todos os cantos, escapava pelas frestas. Chegava, algumas vezes, a incomodar os vizinhos, coitados - porque ninguém é obrigado a tolerar amores alheios exibicionistas.

Ele a enxergava através de lentes coloridas de arco-íris, suas pequenezas, o jeito manhoso como esfregava os olhos miúdos ao acordar na manhã amarela e vagarosa, as unhas dos pés pintadas de rosa (coral, ela dizia) contrastando com a brancura da pele e dos lençóis. Havia em tudo dela uma leveza de pluma, como uma bailarina que fosse mais leve que o ar.

E ela, bailarina que era, tinha nele seu soldadinho de chumbo. E ainda que peso chumbinho, era ele seu soldado valente, que a protegia dos medos dela própria, que a abraçava forte, deixando o ombro umedecer até que sentisse o peito dela parar de soluçar. Então, ele, soldado passarinho, sorria com os olhos, assim de bico fechadinho, e ela entendia que ali naqueles olhos morava todo o calor que ela precisaria para se aquecer quando fosse inverno aqui dentro.

Enquanto ela rodopiava como pluma ao vento, ele a segurava com os braços de chumbo, mas macios como algodão, que era pra ela não escapar pela janela, balão desgovernado por aí. Assim é que como pluma e chumbo eles equilibravam leveza e peso, cuidando sempre de lembrar que sem um não havia o outro.

Eis que um dia, por descuido, se esqueceram de fechar as janelas. E o amor ficou por ali escapando por toda a noite, embriagando a quem passasse pela rua, fazendo com que todos se apaixonassem.

Pela manhã, os donos de todo aquele amor se deram conta do esquecimento e perceberam que ele, o amor, havia se esvaído, murchado como um balão sem gás. Então, a imensidão daquela casa sem móveis doeu e não deixou respirar, ainda que só o que houvesse ali fosse ar. Ela entendeu que a tristeza, tão pequena, precisa de móveis em que se escorar, poltronas nas quais ninguém se senta, mas úteis para preencher tanto canto vazio. E quanta imensidão cabia num reles cantinho vazio!

A moça dos olhos miúdos partiu, levando com ela as lentes de arco-íris do moço, que ficou só com seu coração de chumbo. Ela foi viver em um apartamento mobiliado. Encheu os armários de solidão, as gavetas de melancolia e comprou um passarinho que vivia em uma gaiola, como ela, triste como ela.

E naquele pequeno apartamento cheio de móveis e vazio de amor nunca se ouviu um pio.